O Partido, os católicos e a Igreja<br> – questões de actualidade

Carlos Gonçalves

Em 24 de Março, uma de­le­gação do Par­tido, que in­te­grou o Se­cre­tário-geral, en­con­trou-se com o Car­deal D. Ma­nuel Cle­mente. O en­contro visou a troca de opi­niões sobre a si­tu­ação do País e re­sultou de uma con­ver­gência de von­tades e acerto de agendas.

O en­contro foi po­si­tivo. Je­ró­nimo de Sousa si­tuou-o nas «... re­la­ções nor­mais e ins­ti­tu­ci­o­nais com a Igreja ...», lem­brou que «... não há um par­tido de ca­tó­licos, todos os par­tidos têm ca­tó­licos nas suas fi­leiras ...», va­lo­rizou «... a con­ver­gência de opi­niões em re­lação à ne­ces­si­dade de al­terar o rumo desta po­lí­tica, que produz e re­produz tanta in­jus­tiça e … po­breza e, com as na­tu­rais di­fe­renças que existem entre o Par­tido … e a hi­e­rar­quia ca­tó­lica, foi pos­sível en­con­trar … pontos de vista co­muns, formas de in­ter­venção, a va­lo­ri­zação do sen­ti­mento de con­fi­ança e es­pe­rança numa mu­dança de rumo, o valor da so­li­da­ri­e­dade, par­ti­cu­lar­mente com os que menos têm e menos podem ...(e) a iden­ti­fi­cação do que … a Igreja e o Par­tido … pro­curam … um País me­lhor, com mais jus­tiça so­cial, com menos po­breza e de­sem­prego, não fi­cando apenas na con­tem­plação dos pro­blemas, mas com in­ter­venção con­creta junto … dos ci­da­dãos ….».

Estes são ele­mentos im­por­tantes, no quadro da ori­en­tação geral do Par­tido para a cons­trução de uma po­lí­tica e de uma al­ter­na­tiva pa­trió­tica e de es­querda, vin­cu­lada aos va­lores de Abril. Por isso, não se es­tranha a sua ocul­tação pelos media do­mi­nantes, nem as mis­ti­fi­ca­ções que tra­duzem o «in­có­modo» com o even­tual cres­ci­mento da in­fluência do PCP entre tra­ba­lha­dores e sec­tores ca­tó­licos. Para uns o PCP en­trou na «caça ao voto», para ou­tros deixou cair a «de­nuncia da opção ca­pi­ta­lista da hi­e­rar­quia». Mas a ver­dade é que essas ques­tões estão dis­cu­tidas há muito, em po­si­ções que são a base da nossa in­ter­venção.

Em 1943, no auge da bar­bárie nazi-fas­cista, Álvaro Cu­nhal es­creveu: «... a Igreja... tem apoiado… as atro­ci­dades fas­cistas… por isso com­ba­temos… (a sua po­lí­tica) e os sa­cer­dotes fas­cistas... Mas não os com­ba­temos pela ac­ti­vi­dade re­li­giosa… (mas) sim pela ac­ti­vi­dade contra o povo e o País…». E «... não es­que­cemos que muitos ... são ini­migos da Ale­manha nazi … (e que) cen­tenas de mi­lhares de tra­ba­lha­dores... são... in­flu­en­ci­ados pelo ca­to­li­cismo, não po­demos se­parar-nos dos nossos ir­mãos, ope­rá­rios e cam­po­neses ca­tó­licos..., ou (os) atraímos… para a luta contra o fas­cismo, ou dei­xamos que… se cons­ti­tuam em (sua) re­serva… não fa­zemos a «guerra à re­li­gião» e não pre­ten­demos atingir a li­ber­dade de crença e de prá­tica de culto…. Es­ten­demos le­al­mente a mão aos ca­tó­licos... para que par­ti­cipem no mo­vi­mento na­ci­onal contra o fas­cismo...».

Em 1946, o IV Con­gresso do PCP apontou: «… Lu­tamos contra o sec­ta­rismo e in­com­pre­ensão de muitos dos nossos mi­li­tantes e …an­ti­fas­cistas re­pu­bli­canos. Houve erros de in­to­le­rância em 1910 que não devem... re­petir-se...». Em «O Par­tido Co­mu­nista, os Ca­tó­licos e a Igreja», de 1947, Álvaro Cu­nhal es­creveu: «... As con­vic­ções re­li­gi­osas, por si só, não são sus­cep­tí­veis de afastar os ho­mens na re­a­li­zação de um pro­grama so­cial e po­lí­tico,... co­mu­nistas e ca­tó­licos podem e devem unir-se em de­fesa dos seus an­seios co­muns...».

O VI Con­gresso, em 1965, con­so­lidou a ori­en­tação na re­lação com os ca­tó­licos e ou­tros crentes. A vida com­provou a sua jus­teza – com o papel de pa­dres e ca­tó­licos pro­gres­sistas na uni­dade an­ti­fas­cista, na Re­vo­lução, no Por­tugal de Abril e na sua de­fesa.

Em 1974, com mi­lhares de ca­tó­licos mi­li­tantes do PCP, Álvaro Cu­nhal afirmou: «…os co­mu­nistas de­fendem… boas re­la­ções do Es­tado com a Igreja. Esta... po­lí­tica não se ba­seia em cri­té­rios de opor­tu­ni­dade, mas numa po­sição de prin­cípio.… O mundo evolui e a Igreja Ca­tó­lica... mostra também in­dí­cios de... evo­lução po­si­tiva.... Con­fi­amos em que os ho­mens mais es­cla­re­cidos da Igreja… com­pre­endam… a sin­ce­ri­dade (e) as pro­fundas im­pli­ca­ções, para o pre­sente e para o fu­turo, desta po­sição do Par­tido...».

Nos dias de hoje, o PCP con­tinua a con­si­derar que as con­vic­ções re­li­gi­osas não mudam a po­sição de classe de cada um, nem al­teram um pro­grama so­cial e po­lí­tico pro­gres­sista.

A Igreja Ca­tó­lica re­gistou mu­danças. Cresceu a fusão do Es­tado do Va­ti­cano com o ca­pital fi­nan­ceiro, que factos re­centes não pa­recem ainda ter su­pe­rado, mas avançou a se­cu­la­ri­zação e emer­giram novas re­a­li­dades e di­nâ­micas. Alargou-se o fosso entre o novo di­ag­nós­tico do ac­tual Papa, da «eco­nomia de ex­clusão e de­si­gual­dade», da «eco­nomia que mata» e a in­de­fi­nição ou ocul­tação de uma res­posta de facto trans­for­ma­dora.

Não existe uma «questão re­li­giosa» em Por­tugal e o PCP in­ter­virá para que assim con­tinue. Mas a ver­dade é que há es­tru­turas da Igreja cuja ac­ti­vi­dade serve os in­te­resses do grande ca­pital. Neste quadro o PCP não pode ab­dicar do di­reito de res­posta, se isso for im­pre­te­rível.

A Igreja deve ser res­pei­tada na acção re­li­giosa e ou­vida com atenção no plano ins­ti­tu­ci­onal. Nada move os co­mu­nistas contra a Igreja, não acom­pa­nhamos po­si­ções an­ti­cle­ri­cais, de gé­nese anarco-ma­çó­nica. A ex­pe­ri­ência mostra que é po­si­tivo o re­la­ci­o­na­mento re­gular entre o PCP e a Igreja, apesar dos pre­con­ceitos.

Hoje, o re­la­ci­o­na­mento dos co­mu­nistas com am­plos sec­tores so­ciais e de massas, sejam ou não crentes, tem de apro­fundar-se, na de­fesa dos tra­ba­lha­dores, nas ins­ti­tui­ções, na CDU, na luta por um Por­tugal so­be­rano e de­sen­vol­vido.

A ex­pe­ri­ência prova que não é di­fícil a con­ver­gência. O hu­ma­nismo, a pro­xi­mi­dade aos po­bres e opri­midos, os va­lores de paz, jus­tiça e igual­dade do «cris­ti­a­nismo pri­mi­tivo», que re­sistiu à as­si­mi­lação pelo Im­pério Ro­mano, e o acervo cul­tural dos tra­ba­lha­dores e das massas ca­tó­licas não estão longe dos ideais co­mu­nistas.

No ca­minho para uma al­ter­na­tiva pa­trió­tica e de es­querda há passos a con­so­lidar, com os ca­tó­licos mais pró­ximos da «Te­o­logia de Li­ber­tação» e da «Igreja dos Po­bres», com sa­cer­dotes e crentes que não mi­litem na po­lí­tica de di­reita, que não ma­ni­pulem a re­li­gião como «ópio do povo», que se com­pro­metam com a sua fé por um Por­tugal com fu­turo.

 



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